domingo, 17 de maio de 2009

Quem Ama Reclama

Marcelo Rubens Paiva (texto publicado no Estadão)



Mauro já tinha ouvido falar dela.

Os amigos diziam: ''É o seu número. Você tem que conhecer.'' Ignorava, soltando a mesma máxima: ''Mulher não é sapato.''

Tocava a sua vida de solteiro com uma certeza que incomodava. Curtia cada minuto da opção escolhida, considerada por ele o extremo de liberdade, e por outros, de intolerância. Apenas poucos amigos infelizes no casamento invejavam.

Ao contrário do que propunham, ele queria nada a sério com alguém de um mundo oposto: uma garota que morasse do outro lado da cidade, como uma operária de Osasco, ou uma cientista maluca da UNB; uma adolescente com aparelho nos dentes, que mascasse chicletes sabor framboesa; a amiga na menopausa da mãe; a garçonete hippie de uma boate punk.

Por que não uma policial militar de patente baixa? Talvez uma africana aluna de intercâmbio da USP, ou uma boliviana bolivariana e chavista, ou uma ex-guerrilheira chilena? Uma contrabandista de tênis piratas, chinesa especialista em comida baiana? Quem sabe a prima distante, vascaína fanática, esquizofrênica paranóica, sonâmbula tarada, obesa, obcecada por Roberto Carlos? Uma fã de cinema chileno, bêbada da Vila Carrão?

Já que a solidão não o afetava, ele gostava de estar com muitas, o que é não estar com ninguém, diziam os amigos, pois não se estabelecem vínculos. Mauro não pretendia aprofundar intimidades, repartir frustrações e medos.

Um sujeito como Mauro vive apenas o trailer da relação. Quando se amanhece junto, há a trama com ações e conflitos - e é obrigado a falar de sonhos da noite anterior -, ele já pensa na desculpa que dará, para que o amanhã seja sempre outra sessão.
Maria não estava bem no casamento. Foi um pesadelo quando as duas amigas contaram que viram o marido boêmio com outra. Mas era ele mesmo? Uma tinha certeza, a outra, não. Maria reclamou, chorou. Bem que a alertaram: ''Ele não presta, sai fora, você merece coisa melhor.''


Como para ela o homem da sua vida não era ''coisa'', ouviu-o negar. Ela conhecia as fraquezas humanas. Tolerante, e sem 100% de convicção, perdoou, sem nunca ter perdoado de fato, se é que você entende.

Estabeleceu regras. Ele nunca mais chegaria depois da 1 hora. Beberia apenas socialmente. Acordariam juntos de manhã, para correr no Villa-Lobos. Viajariam nos fins de semana para pousadas que ela escolheria. E, sim, mudariam os armários da cozinha, promessa de casamento nunca cumprida. Ele poderia jogar a pelada de terça-feira, dia em que ela sairia para beber com as duas amigas. Mas ambos, antes da 1 hora, em casa!

Claro que ela sabia muito bem que um casamento não se sustenta por estatutos, obrigações difíceis de serem realizadas, e que a confiança foi arranhada. Claro que Maria sabia que novos armários na cozinha não bastavam para limpar uma mancha do passado. Mas era preciso acreditar na evolução. O homem era dela, ela nunca teve certeza da traição, iria continuar com o que se propôs quando se juntaram.

Terça-feira. No bar. Com as duas amigas, Maria viu Mauro, o cara que diziam: ''O seu número.'' Elas apontaram, é aquele do canto, sentado na última mesa, com dois amigos. Pareciam entorpecidos, pois gargalhavam. Bebiam dry martini. Maria acha ridículo homem que bebe dry martini, bebida de tia. Ela observou espantada: ''É esse aí?!''

No começo, não sentiu nada por Mauro. Mas as amigas não paravam de falar quanto era gostoso, charmoso, divertido, interessante, ligeiramente arrogante, desleixado, desarrumado, desencanado. Exatamente do jeito que ela gostava.

Então, Maria se levantou. As amigas riram, tímidas. Esticou as calças, jogou os cabelos pra trás e foi ao banheiro. Ficou de frente pra ele, que nem reparou nela, apesar dos dois amigos a olharem de baixo pra cima e a cumprimentarem.

Mauro estranhou os amigos pararem de rir. Estava entretido com um torpedo que acabara de chegar. O que foi? É ela. Ela está aqui. Quem? Ela, Maria, o seu número.

Odiava tal insistência. Acabara de receber um torpedo irresistível, uma dermatologista de Santo André convidando-o para uma noite completa: consulta na cama.

Maria voltou do banheiro. Eles se arrumaram na cadeira. Interromperam. Apresentaram Mauro. Os dois se deram as mãos sem convicção. Ela o achou um pouco blasé. Ele achou a mão dela fina demais. Ela se foi, e os três olharam, a examinaram. Os amigos voltaram a falar que Maria foi feita pra ele. Tinham tudo a ver. Deviam conversar, se conhecer.

Meia-noite. O restaurante esvaziou. Os três foram se sentar com elas. Claro que deixaram o casal hipoteticamente perfeito se sentar no mesmo canto.

Foi Maria quem puxou assunto, enquanto ele recebia uma intimada da dermo: ''E aí, você vem? Estou na cama com frio.'' Ele respondeu que esperava o trânsito melhorar, e Maria achou um absurdo o cara trocar torpedos, enquanto ela tentava um diálogo.

Mas foi Mauro abrir a boca, para ela sentir uma tremedeira nas pernas. Pois a sua voz rouca ressonou, e um hálito doce, alcoolizado e estranhamente perfumado a envolveu. ''Desculpe, estou sendo mal-educado, mas recebi uma mensagem, o que você disse?''

Ela ficou na dúvida entre mandá-lo plantar inhame-nambu, que dizem fazer bem para o estômago, deixar uma grana in cash, se levantar e ir pra casa encontrar o marido, com quem combinou não mais chegarem depois da 1 h, ou lhe dar a humilhante oportunidade de recuperar a atenção. Pediu outra taça de vinho. Por que tomou a segunda atitude? Porque ninguém entende os truques que o destino oferece; e a voz da inconsciência decide.

Os amigos conversavam entre eles. Maria didática retomou o assunto. Ele abriu os olhos, sorriu e falou algo com o que ela concordava. Assustador: a vida toda ela achava que só ela pensava naquilo. Encontrou um aliado. Começaram a falar. Não pararam.

Elas abriram outra garrafa de vinho. Eles continuaram no dry. Mauro e Maria trocaram opiniões semelhantes. Riam das coincidências de sentimentos, neuroses e manias. Ela olhou o relógio e pediu a Deus que fosse cedo ainda. Nada disso: uma e dez. Ela acabava de romper um pacto. Discretamente, desligou o celular e o deixou bem no fundo da bolsa. Ele fez o mesmo.

A cozinha fechou. As mesas, vazias. Restou apenas um garçom. Ficaram ainda até as 2, no maior papo. Até os três convidarem as três para irem todos dançar numa boate. Elas se olharam. Por que não?

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