quinta-feira, 31 de março de 2011

Lacuna.

 
Eu não posso dizer que é saudade. Não posso te entregar isso numa ligação, num olhar, numa lembrança.

As lembranças que eu tenho se reunem de muitas formas diferentes, e em muitas formas diferentes tambem foi o jeito de enfrentar isso tudo.
E isso tudo tem sido dificil.

Tem sido dificil forçar uma aceitação que diz que a pior intimidade a ser perdida é a dos olhos.
Ficou dificil pousar meus olhos nos seus sem sentir o gosto que eles têm.

O gosto que eu tinha na boca quando sorria pra você, eu tambem esqueci.
Esqueci de muitas coisas. Esqueci quais as coisas tão bonitas que eu dizia pra você.

Esqueci dos detalhes das cores das primeiras flores que te entreguei. Esqueci do bilhete, do que havia escrito nele. Da cor da minha caneta, da cor do teu cartão.

Esqueci do cheiro no teu travesseiro, dos cabelos caídos pelo lençol, enroscados na minha roupa.

Esqueci das cores das tuas lingeries esquecidas num canto qualquer desse apartamento pequeno.
Do cheiro delas no teu corpo, do cheiro do teu corpo nelas. Do cheiro do teu corpo em mim.

Dos teus suspiros, teus pedidos, teus gemidos.
Esqueci como eram os meus olhos em cima de você.

Esqueci a data da primeira noite que dormimos juntos, que horas você acordou, quanto tempo eu demorei pra dormir só pra te olhar mais um pouco.

Dos sonhos que você disse ter tido comigo. De todos que tive com você.

O primeiro filme que te indiquei, o primeiro livro que vc disse ser bom. A primeira frase de efeito, a primeira resposta muda.

O teu melhor amigo que vc pensou que eu teria ciúmes. Teu ciúme das minhas amigas.

Esqueci da nossa última noite, do nosso primeiro desejo. Da nossa primeira noite que pedia um último desejo.

Esqueci de todas as coisas que não tenho me esforçado para lembrar. Mas isso não quer dizer que ainda seja vontade de esquecer. Talvez.

Talvez a unica coisa que eu não esqueça, seja de como você me atormenta ainda, fazendo com que eu perca horas em claro na madrugada pensando em como eu deveria ter esquecido de lembrar disso tudo.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Parafraseando teu sono.


Ainda não era hora de dormir. Ela disse isso assim, com todo o sono do mundo. Me pediu uma história. Me pediu as minhas histórias. Histórias contadas para outros olhos. Mas em nenhum ouvido entregues.

Digitei o mesmo endereço eletrônico de alguns anos pra cá. Me vi escrito e descrito por mim mesmo em tantas palavras e frases.

Lancei a leitura nas linhas da página virtual. Realcei os tons pra que em nenhum sonho daquela noite eu pudesse me ausentar.
Parava e sustentava a preocupação: ‘Bateu o sono?’ ‘Não. Continua pra mim.’

Reli para mim mesmo no isolamento da minha sala, as sílabas que em dias de tormentos me levavam ao teclado.
Devaneios ocorridos pela estrada, horas deitado no sofá em dias tristes e felizes. Contrastes confusos que regaram pequenas histórias.
Lembranças minhas agora presentes na imaginação dela.

Um personagem particular que descobriu um reino de portas abertas.

10 minutos falando e as respostas monossílabicas foram se ausentando. O sono, objetivo procurado, foi alcançado entre os jardins das histórias simples, sem rebuscamentos. Com flores de todas as cores, com frases de todos os gestos. Uma ponte invisível, um sinônimo que nos ligava além da linha telefônica.

Parei em teste. Travei meu suspiro para ouvir.
Silêncio.

O som da Tv ao fundo e a sua boca respirando em sonhos.

Fechei a página, desliguei o monitor com o celular nas mãos. Fui para o quarto com a certeza de algo anormal, especial.
A ligação ainda não desligada no celular deitado ao meu lado, travou meu olhar como que buscando o ar angelical dos olhos fechados em transe.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Pra você, que sabe que é pra você.


Ela resolveu voltar. Voltar a escutar os Beatles, a ler Neruda, a ver quadros de Degas. Entenda, ela teve que se esconder disso tudo, de tudo que a lembrasse isso que chamavam de amor.

Ela não era dessas pessoas que se apaixonavam de repente, que em 1 semana já tinham fotos de casal em redes sociais, em 2 já diziam “eu te amo” e em menos de um mês já pensavam em morar junto. Sempre acreditou que quem “amava” muito rápido, “desamava” mais rápido ainda. E tudo que ela queria era um amor possível, construído, real, com os pés no chão e a cabeça no céu.

Por ser assim não era dada a muitas paixões, mas todas as vezes que se apaixonava dava seu coração, acreditando que quem sabe daquela vez pudesse ser diferente. Mas seus amores não resistiram ao mundo real. E toda vez que um amor morria, levava com ele um pedaço do coração dela. E não é tarefa fácil andar por aí com o coração despedaçado.

Resolveu então juntar todos os pedacinhos que tinha perdido por essas andanças e com cuidado foi passando cola em cada um e encaixando-os como num quebra-cabeças complicado. Pronto, agora tinha um coração completo e talvez até pudesse escutar “I wanna hold your hand” com aquele sorriso alegre e bobo de alguns anos atrás.

Apesar de tudo, como em qualquer quebra-cabeças, as marcas sempre ficam, são visíveis em cada encaixe. Cada marca contava uma história de amor, algumas bonitas e sinceras, outras nem tanto. As marcas contavam choros, lágrimas, sorrisos e todos os espinhos que ela havia pisado no caminho.

Mas ela havia voltado, ainda que um tanto desconfiada, havia voltado a acreditar que um dia essas marcas contariam para alguém o início de uma história. Elas iriam traçar o caminho para o encontro que sempre esperou. Elas valeriam a pena e ela aprenderia a ter orgulho de cada uma delas.


“Ela tem muito e quer mais. Quer sempre. Quer se cobrir de eternidade, quer o oxigênio do risco pra ficar sempre menina. Ela quer tremer as pernas, beijo no ponto de ônibus e a milésima primeira vez. Quer cor e som, lembrança de ontem, sorriso no canto da boca. Ela quer dar bandeira. Quer a alegria besta de quem não tem juízo. O que ela quer é tão simples. Só que ela não é desse mundo.” (Amor e Ponto – Cristiana Guerra)

 

terça-feira, 15 de março de 2011

Deixa eu pintar o meu nariz.


Era fim de tarde caótico na entrada das cinzas carnavalescas. O caos presente na rotina dos últimos foliões dava as boas vindas na entrada do prédio.

Alguém cantando pela rua, outros vestidos de mulher - estranho fetiche resguardado pra esta época, outras dançavam até o chão, quase limpando com a saia os confetes que pareciam toalhas estendidas pela farra que se mostrava resistente ao término.

Ela aguardava o elevador descer , enquanto eu abria a porta do hall de entrada, trazendo o vento e derrubando o bilhete que avisava sobre o elevador desativado devido aos últimos "sambas" dançados dentro do mesmo. Pisei no papel e mostrei a marca da minha sola em cima do recado: Sem elevador até o dia seguinte.

A alternativa estava desenhada à esquerda, mostrando um caminho difícil pela frente, passos cansados e a folia que havia tomado até a ultima gota de vigor que havia naqueles corpos. Mas não havia outra saída, a não ser que quisessemos voltar à rua e desfilar em meio ao bloco que entoava o estranho refrão carnavalesco em uníssono pela rua Pindorama à fora: Segura no Bagre! 

Rimos e em acordo instantâneo decidimos pela escada.

Nossa proximidade era incontida fora da caixa de aço, inevitável o passo sincronizado pelas escadas acima. Um trio corria pela rua sentido à praia, enquanto nosso caminho era sentido contrário. Sem passos ensaiados para economizar fôlego. Inevitável começar aquela conversa.

_Que dia parao elevador quebrar...
_É q você é nova por aqui, sempre quebra.
_Não sou...achei q você fosse...

Falamos assim, com quase a mesma sincronia dos passos. O cansaço apertou as mãos no mesmo momento. Sorriso suado.

_Ufa, quinto andar. Parou? Chegou? Não. Cansei. Vamos sentar?

Sentei esperando ela.

A nuca suava molhando a ponta dos cabelos loiros, os braços deixavam os pingos correrem até caírem pela ponta dos dedos. Seus olhos sorriam com um certo devaneio, pareciam felizes, torci que fosse pelo encontro, mas provavelmente o Carnaval era o responsável.

Ironia. Subimos de escada toda aquela ironia. O vento que decidiu brincar de Carnaval com o bilhete de aviso, não se dava o trabalho de subir todos aqueles degraus para um sopro qualquer.

_É sempre no ultimo dia que encontramos as pessoas mais legais.
_É sim, mas nem acabou ainda.
_Ainda não, mas poderia ter rolado antes.
_Iria te encontrar de qualquer jeito. Sabe como é, já ouviu aquela? "O acaso é amigo".

Disse com desdém, quase apontando na folia do Carnaval a desculpa de poder falar o que viesse no instante embriagado pelo cansaço dos degraus.
E riu, querendo me mostrar que conhecia uns tais Los Hermanos, barbudos cantores de musicas melódicas, que eu, figura carnavalesca com flores de havaianos nos ombros, pés descalços e bermuda tactel nem deveria conhecer.

Mal sabia ela que sou tão moldado para o carnaval quanto meu cachorro Zé é para um concerto de ópera.
O acaso é amigo.

Subimos juntos os nove andares dela. Desci mais dois, pra chegar no meu, o sétimo. Fiquei no intervalo das escadas sentindo o rastro do perfume dela que ainda se apoiava na parede. Quase flutuei fechando os olhos e ouvindo lá embaixo os foliões com a estravagante "Segura no Bagre".

Imaginei os tais barbudos hermanos cantando isso em tom melódico quase triste, e ri sozinho.

Coloquei a mão no bolso e olhei o papel com um numero e o nome dela.
Se todo carnaval tem seu fim, ainda era hora de eu brincar de ser feliz.