Texto de Marcelo Rubens Paiva, publicado no Estadão. (ótimo!)
Diante do marido, Maria enumerou as razões, todas falsas. Não contaria que partia, pois descobriu há exatamente 12 horas o homem da sua vida, Mauro, aquele de quem sempre falavam ''o seu número''. Enfiou o essencial numa mochila verde e se mudou para a mãe.
No dia seguinte, ele estava na sala, esperando. Ela se sentiu invadida, pegou a mochila e foi para a casa da melhor amiga, aquela que o viu com outra. Deixou genro e sogra falando sozinhos. Quando o viu no outro dia no retrovisor a seguindo, acelerou, escolheu ruas vicinais, desceu até o estacionamento do shopping, parou numa vaga, subiu dois andares pelas escadas, saiu e entrou num táxi.
Chegou pontualmente no apartamento de Mauro, que abriu a porta de banho tomado. A casa cheirava a xampu. Se beijaram na porta. As pernas dela tremeram. Ele sorriu: ''Que linda.'' Então, tocou o interfone. Ele logo adivinhou problemas. Ela sentou no canto do sofá e acariciou o labrador. O porteiro informou. O marido dessa senhora que acabou de subir está na portaria. ''Ele está calmo'', foi lacônico. Mauro olhou para Maria e, procurando disfarçar a apreensão, avisou: ''Seu marido está aí.''
Ela levantou num pulo, fez cara de ''paciência-tem-limite''. Contou que saiu de casa há dois dias, que ele não se conformava e hoje a seguiu. Mauro, para organizar a confusão e surpresa, resolveu ser prático: ''Você quer que eu o dispense?'' Ela balançou a cabeça que sim.
Claro que Mauro não foi pessoalmente. Nem passou pela sua cabeça duelar por alguém que mal conhecia, aquela de quem sempre falavam ''o seu número''. Pediu para o porteiro dispensar com educação o requerente, e chamar seguranças dos prédios vizinhos, se as circunstâncias assim exigissem.
Ficaram Mauro e Maria em silêncio. Momento ideal para ele se alongar na habitual tarefa de abrir um vinho, girando o saca-rolhas com mais precisão, cheirando a mesma, examinando a bebida contra a luz, enquanto calculava o que fazer, se a situação fugisse do controle. Ela foi para a varanda, checar a vista, o céu e a consciência.
Ele checou as portas trancadas. Aumentou o som e serviu o vinho.
Mauro desceu na manhã seguinte, para comprar pães e queijos. Perguntou ao porteiro se tudo bem. Ele disse que o rapaz chorou, coitado, confessou que não fez nada, que não merecia, que boatos de uma traição chegaram ao ouvido dela, tudo falso, que aquelas amigas o detestavam, faziam propaganda contra, que ele a amava, iam ter filhos. ''Deu pena, seu Mauro. Eu disse: o senhor é jovem e bonito, tem a vida pela frente. Ele foi embora 15 minutos depois. Cabisbaixo. Chorando.
''Ele agradeceu envergonhado. Fez as compras na padoca da esquina. Temeu ser atacado pelas costas. Pior que não sabia quem era, nem como. Mas, como o adversário não forçara nada no dia anterior, era provavelmente da (e pela a) paz, e nesta altura, indicam os manuais do atraiçoado, se conformava sussurrando no gargalo de um destilado.
Mauro subiu com as compras, levou o café da manhã para ela na cama. Ficaram quatro dias sem sair de lá. Minto. Ela desceu até o térreo, pegar a mochila verde que a amiga deixou na portaria, e subiu voando, vestindo só a velha camiseta do colégio dele.
Ficaram grudados na cama e na tevê, acompanhando a preparação do Corinthians para a série B, imaginando como seria divertido se ele ganhasse a Copa do Brasil, com direito à Libertadores, ganhasse a segundona, mas preferisse continuar nela, para jogar contra times exóticos, que têm patrocinadores na camisa como PittsBurg, rede nordestina de lanchonetes, Universidade Potiguar, Ótica Alagoas, e jogar num estádio chamado Frasqueirão, em Natal.
Sim, torcem para o mesmo time. Discutiram cada contratação. Apoiaram a camisa roxa, que encomendaram na primeira oportunidade. E não é que ela sabe de cor ''aqui tem um bando de louco, louco por ti Corinthians, pra aqueles que achas que é pouco...''
No Rio, são Flamengo. Gostam do Milan, e não acreditam que Kaká seja esse santo propagado. Gostam do Cristiano Ronaldo. Concordam que o Leão tem um gênio difícil, mas é um grande técnico, e que o melhor técnico o País é do Luxa. E acham ridícula a caça a jogadores com bons dribles, craques como Valdívia e Michael, agora no Coritiba. Sim, ela adora futebol!
Sugerir um cineminha? Que nada. Podiam baixar qualquer filme pelo bittorrent, legendá-lo e assistir na nova tevê de alta definição dele. Ambos preferem filminho na cama.
Maria e Mauro se deram bem em tudo. Assustadoramente perfeita a convivência. Acordavam no mesmo horário, trabalhavam com seus laptops sem saírem de casa. Almoçavam a mesma refeição, no mesmo horário. Tudo se encaixava, tudo era simples demais, tudo era feito em acordo, nada de negociações traumáticas. Tomavam banhos juntos. Cozinhavam juntos. Gostavam da mesma safra de vinhos, das mesmas frutas, do mesmo sabor de Halls.
Em dias, assumiram a relação. Saíram da toca. Enfrentaram a desconfiança da família e amigos. Todos concordaram que ele nunca esteve tão feliz, e ela, completa.
O tempo voou. Fizeram a primeira viagem juntos, Venezuela, que ambos desconheciam. Como dois esquerdistas convictos, amaram. Tiveram a mesma opinião sobre o regime polêmico. Não perderam o bom humor nem quando ele perdeu os passaportes, e foi um rolo a viagem de volta.
O casal nunca discutia. Nunca discordava. Um nunca criticava o outro publicamente. Um dava forças para as esquisitices do outro. As piadas e brincadeiras se encaixavam, só eles riam.
Se ficassem em casa, era a melhor coisa do mundo, se acordassem depois do meio-dia, era a melhor coisa do mundo, se saíssem para comer, sempre acertavam o que o outro tinha em mente. Se fossem dançar, aplaudiam ou renegavam o mesmo DJ.
Você já sacou aonde isso vai dar. Parece óbvio, inexplicavelmente dolorido.
Foi num aniversário de namoro que ela notou que algo a incomodava. Chamemos de o tédio da virtude, perfeição que corrói. Ela nunca dizia o que estava errado. E ele não era adivinho.
Resultado. Ela voltou para ex-marido, que nunca lhe deu estabilidade, em quem nunca confiou. Ele procurou a mediquinha do ABC, que não o perdoou pelo sumiço.
Uma lição simples e precisa se extrai desse caso de amor malsucedido. Sem conflito não há história.
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