domingo, 17 de maio de 2009

Quem Ama Reclama - 2ª Parte.

Artigo de Marcelo Rubens Paiva


Duas da manhã. O restaurante vazio perdeu a identidade. O último garçom apagava as poucas velas. Os amigos pediram a saideira. Não queriam que aquela madrugada acabasse. Elas aceitaram esticar numa boate.

Mauro e Maria, que todos diziam feitos um para o outro, desligaram os celulares. Ela rompia o acordo recentemente estipulado com o marido boêmio: sempre chegar antes da uma. Ele deixava uma médica do ABC esperando com frio e um estetoscópio na cama.

Maria sabia que o cara era um solto no mundo convicto. Mauro, que ela era casada com um nada a ver. E não estava nada feliz, depois que viram o marido com outra.

Duas consciências pesadas? Não muito. Especialmente quando revelaram as incríveis coincidências de neuroses e manias entre pessoas que acabaram de se conhecer. Especialmente quando ela falou algo com o que ele concordava. Especialmente quando ele esbarrou sem querer na mão dela, para experimentar o vinho. Ao devolver a taça, ela reparou na impressão labial dele na borda do cristal e sutilmente fez questão de encostar os seus lábios na marca. Ele notou. Sorriu, como se já conhecesse todos os truques. Ela disfarçou sem graça; não era para ele ver. Ele olhou seus lábios. Ela gelou de repente. Meu Deus, o que está acontecendo?!, se perguntaram.

''Bora?''

Os amigos apressaram. Pagaram a conta. Levaram duas garrafas de vinho.

Na calçada, listaram as opções: Milo, Clash, Vegas, D''Edge, Inferno, Berlim, CB, Love Story, Kilt, Vagão, Torre do Zero a Zero, 13, Studio SP, Astronete.

''A Lôca...'', alguém sugeriu.

Riram. A Lôca, inferninho surpreendente. O único em que não se consegue prever o que vai rolar, e como pode acabar.

''Já usaram a ponte?'', Mauro perguntou.

''Não. Vamos?'', Maria empolgada gostou da sugestão.

A ponte recém-inaugurada, toda iluminada, com cabos que lembram uma garfada de espaguete, já apelidada de ''estilingão''.

Pararam o carro no acostamento, com o pisca-alerta ligado. ''Vem, não tem perigo'', Mauro puxou Maria. Sentaram no parapeito. Tomaram vinho sobre o Rio Pinheiro fétido. O vento frio ressonava nos cabos. Era como se uma orquestra afinasse antes do concerto. Brindaram a urbanidade tóxica. Só quem mora na cidade vê beleza nas iluminadas intervenções de concreto que aparentemente ligam o nada ao lugar nenhum. ''Parece um sutiã'', ela disse.

Numa Lôca apertada, Maria esbarrou em Mauro. Que respeitosamente a defendeu do empurra-empurra. Dançaram. Se perderam dos amigos. ''Estou indo embora'', ele disse. ''Fica mais um pouco'', ela disse. Mal se escutavam. Ele entendeu o recado. Passou os braços pela cintura dela. Cercados por desconhecidos. ''Vem comigo'', ele disse. Ela colou o seu corpo no dele. ''Não posso'', ela disse. Tinham a mesma altura. Tinham ambos o rosto claro. Tinham ambos olhos pretos, cabelos pretos, lisos. Estavam ambos de azul-marinho. ''Pode sim'', ele disse. E parecia que se conheceram há uma eternidade. ''Em qual mês você nasceu?'', ela perguntou. ''Ótimo'', ele respondeu. E a levou.

Amanhecia, e escutavam Lhasa De Sela no sofá da sala do apartamento dele. O Labrador dourado que os acompanhava era do tamanho do labrador preto dela. Liam o mesmo livro, ela descobriu (Homem Comum). Na varanda, um pé de mexerica era visitado por maritacas. No canto, um canteiro com ervas, chás. Foram pra cama só depois de ela experimentar o seu capim-limão.

Meio-dia. Ela entrou no último carro do metrô. Sentou na última fileira. Ou primeira, quando ele voltar. Triste? Tensa? Emocionada. Encantada. Assustada. Encorajada: sair da trincheira e ir adiante, sob fogo cruzado.

Um encontro desse aparece uma vez na vida. Aparece para se repensá-la e recalcular o plano de vôo. Para derrubar convicções. Seria uma injustiça deixá-lo entre as boas lembranças. A vida é uma só, Maria sabe muito bem. Se algo novo tem a força de apagar decepções que não são esquecidas, é preciso acreditar nas surpresas casuais. É preciso acreditar na evolução.

Abriu o livro que levava na bolsa. Exatamente na cena em que Phoebe, a mulher do protagonista, descobre a amante. ''A mentira é uma maneira vulgar e desprezível de controlar a outra pessoa'', ela diz.

Chegou em casa. O marido estava no sofá, com o labrador preto nos pés. Nem o cão fez festa. Não precisou de meia palavra, já que tudo se revelou. Mentir seria humilhá-lo, pensou. Sim, dormi com outro cara, estou a fim dele. Queria que o marido abaixasse a cabeça e, como um potro vencido por um garanhão que o surrou, deixasse o pasto para curar suas feridas na solidão do vexame. Mas surpreendentemente ele começou a chorar, depois a esbravejar, depois a agredir, depois a xingar.

Ela percebeu que não seria fácil e, pior, que ela é quem teria de partir, se quisesse resumir o presumível.

Com alteridade, enquanto ela enumerava as razões, evitando contar que descobriu o homem da sua vida em 12 horas, ele se dizia injustiçado por um pérfido boato que a traíra. Ela não se alongou. Pegou o essencial, enfiou numa mochila verde e foi para a casa da mãe.

No dia seguinte, ele estava na sala com a mãe, esperando. Mais queixas, pedidos de desculpas, acusações. Mais promessas de um futuro melhor: ''Deixa eu mostrar que sou alguém melhor.'' As confusões se alastraram.

Ela? Pena, muita. Por isso, pegou a mochila verde e foi para a casa da amiga, aquela que o viu com outra. Deixou genro e sogra, indignados. Falando sozinhos.

Outro dia. Ela ficou louca quando olhou no retrovisor e viu o marido a seguindo de carro. Justamente na noite em que reencontraria Mauro. Moleque, pensou! Acelerou, e o moleque a imitou.

Entrou em ruas vicinais, passou faróis vermelhos, ignorou lombadas. E o insistente sem desistir. Ela decidiu parar numa praça calma. Ele parou metros atrás. Ela saiu do carro. Ele, não. Estava apenas seguindo. Não queria conversar nem nada. Ele aumentou a música que tocava no seu som: ''Eu vou tentar, mesmo que eu não ganhe nada com isso, eu preciso salvar o mundo...''

A banda que aprenderam a curtir juntos. Maria não acreditou em tamanha prepotência. Voltou para o carro e arrancou.

Entrou no shopping a toda, parou na primeira vaga, correu até as escadas rolantes, subiu a desligada - dois andares -, saiu pela entrada e pegou um táxi no primeiro ponto. É preciso apostar na felicidade.

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